13 agosto 2019

Carlos Lopes

Entrevista CM em 2019, 35 anos depois


Entrevista escrita no CM 2019, 35 anos depois

Fez 2:09:21 horas, recorde olímpico, que durou 24 anos, ou seja, até Pequim. Mas ia preparado para fazer menos tempo?

Preparei-me para fazer duas horas e sete minutos. Não foi necessário. Tinha a preocupação de fazer a média de 20 km/h e durante duas horas. Estava a correr para 2h06/2h07. Sabia como acabava os últimos 5000 m, quem eram os mais rápidos, mais fortes. Fui ‘despachando’, lentamente, o que era necessário ‘despachar’ com antecedência. Tanto assim que quando o queniano Joseph? Nazau? se ‘ficou’, muito próximo dos 37 km, disse: ‘Bom, três é melhor que quatro adversários.’ Portanto, uma medalha já estava garantida. Depois, bem, depois foi só ‘despachar’ os outros dois.

No último quilómetro, o que é que lhe veio à cabeça ?

Estar descontraído. Sabia que tinha 200 metros de avanço. Sabia que era o que mais desejava no momento – estar isolado. Já estava convicto que a vitória não fugiria. O importante não era o recorde, mas, sim, ser o primeiro de todos, ficando para a história do atletismo português.

Não pensou na mulher, nos portugueses, na nossa bandeira?

Sendo uma pessoa fria, só pensava em chegar à meta, em ganhar. Depois, sim, procurei a minha mulher no estádio, porque queria que desse uma volta comigo, mas não foi possível. Quando estava com ela, disse-lhe que gostava de ser mosca, para estar na cabeça das pessoas.

Acreditou sempre na vitória?

Desde o tiro da partida que a minha convicção era só uma: ganhar. E como, nesse ano, também tinha batidos os recordes pessoais de 5000 e 10 000 metros, fui tranquilo. Sem stress. Com a consciência de que estava preparado para ganhar.

Com quanta antecedência começou a pensar na vitória?

Dois anos e meio antes. Mentalizei-me que tinha a última hipótese de ser campeão olímpico, porque nos 10 000 m já tinha alguma dificuldade. Já estava com 37 anos e meio. Não era impossível, mas era mais difícil. A maratona era mais acessível. Foi um risco calculado.

Quando cortou a meta parecia ter vontade de dar mais umas voltas na pista…

Ainda dei uma volta seguida. Quando ia para dar a segunda, ao ver o John Treacy e os outros quase a desfalecer, já não dei – era uma falta de respeito.

Antes da maratona não comeu hambúrguer nem bebeu coca-cola?

Não. Bebi água e comi o bifinho da ordem. Mas um bife com um tamanho…Um bife de quase um quilo.

E dormiu o sono dos justos?

Dormi tranquilamente.

Nem chorou de alegria?

Não era para chorar, era para fugir dos outros.

Mas o seu treinador, Moniz Pereira, não se conteve?

Chorou que nem uma Madalena. Realizou-se o sonho dele – ter um atleta olímpico e, se possível, a conquistar a medalha de ouro.

O seu sucesso também passa pelo treinador e companheiros?

Claro. Uma equipa é uma família. Sem treinador o atleta não pode ter sucesso. Alguns são mais atrevidos e avançam, mesmo, contra a vontade do treinador. O próprio Moniz Pereira dizia muita vez: ‘Eu mandar treinar os meus atletas? Eles treinam mais do que quero.’ Depois, há que acreditar. Se acreditamos muito no treinador, vamos até ao fim. Depois, o grupo era extraordinário – o Fernando Mamede, o Aniceto Simões, entre outros. Quanto maior for a qualidade dos atletas, melhor será para o grupo. Entre os atletas acaba por haver uma disputa pelo poder , o que é saudável. E quem não pensa assim dificilmente será grande atleta. Por isso é que estava sempre preparado para correr com os melhores.

Tem noção do que representou a sua conquista para o País?

Com 37 anos tinha essa noção, embora não a demonstrasse. A vitória foi como que um acordar para as novas realidades, para novos conceitos, para novos valores. Fui um dos grandes responsáveis pela abertura a novas mentalidades.

Sente que Portugal lhe agradeceu?

O povo português… sim, ainda hoje.

Mas…

…mas o reconhecimento existe, está bem vivo na memória dos portugueses. Agora, possivelmente, podia ter melhor vida, se quem tem poderes para desenvolver o Desporto tivesse outra cultura desportiva.

A sua mulher viajou ao seu colo no carro que o levou até à partida?

Quando me foram buscar para ir para a partida, que ficava aí a 4 km, o automóvel estava cheio. Por isso, a Teresa teve de ir ao meu colo. Houve ali umas palavras mais ‘desequilibradas’, mas, ao fim de duas horas, já estava perfeitamente tranquilo. Agora, não foi agradável. Se foi uma forma de me pressionarem? Não houve hipótese, porque ficou logo tudo sanado. Desabafei. Disse o que pensava.

Mas não é normal...

Em Portugal há sempre coisas anormais. Pode nem ser por querer, mas, às vezes, não se mede o que se diz. Não posso dizer que gostei. Como não gostei que não tivessem arranjado um bilhete ou um cartão para a minha mulher entrar no estádio. Por acaso deu comigo, que, ao fim de uma hora, esquecia tudo, desabafava o que tinha a desabafar. Esquecia tudo. Tanto assim que, 40 minutos antes da maratona, tinha 46 pulsações por minuto.

"Safei-me de boa na avenida do Eusébio". Quinze dias antes da maratona foi atropelado...

Estava a fazer um treino muito específico, de 15 km, no máximo da minha velocidade. Vinha junto ao passeio, em frente ao Estádio da Luz, hoje avenida Eusébio da Silva Ferreira. E o Lobato Faria, comandante da TAP, sportinguista, fez o favor de me atacar com todas as forças. Dei três cambalhotas no ar, tive o cuidado de meter a mão atrás da nuca, encolhi-me… mas safei-me de boa. Quando me levantei, vi que não estava nada partido. Fiquei descansado. Ainda fui ao hospital. Parei três dias dias. Ele pediu-me desculpa, mas foi uma desculpa esfarrapada.

"Ultrapassava ciclistas a subir a 20 km/hora"

A Porta 10 A era a mais famosa dos estádios portugueses. Era por ela que a maioria dos atletas sportinguistas entrava e saía, para treinos e jogos. "Quando se entrava, entrava-se com o coração aberto, disponível e sensível àquilo que era o grande Sporting", recorda Carlos Lopes.
Era na mítica porta que o viseense iniciava a preparação na estrada. Sempre com o leão na cabeça: "É o símbolo do clube e eu, como leão, fiz tudo para também ser um símbolo do clube. Na capacidade para lutar era um verdadeiro leão."

E de Alvalade seguia até à subida para o Cabeço de Montachique (Loures), determinante na preparação para a maratona. Já com muitos quilómetros nas pernas – perto de 20, a "uma média de 3 minutos por quilómetro" –, Carlos Lopes chegava a atingir, na escalada longa e acentuada, "20 km/h na parte mais dura. Até passava por ciclistas". Os automóveis "não ultrapassavam os 30/40 km" e o piso não era o de hoje, "tinha de se fugir dos buracos", lembra o campeão.

À "consistência e habilidade" ganhas na subida para o Cabeço de Montachique juntava-se o crosse. No parque de Monsanto "fazíamos três voltas a um percurso de 5,5 km", conta o atleta de Vildemoinhos, lembrando, também, que subiam "íngremes rampas, cinco e seis vezes" para saber "sofrer. E íamos para lá com um sorriso nos lábios, porque sabíamos que alguém ali sofre que nem um lobo".

A pista, essa, é fundamental. Porquê? O beirão explica: "Permite-nos avaliar a nossa velocidade de cruzeiro e a capacidade de competição. Avaliamos a velocidade prolongada. O trabalho era todo feito à base de pista, pensado nas sérias que fazíamos.".

"Teimoso, humilde e protetor da família"

Conheceram-se no Sporting. Teresa, campeã nacional dos 4x100, grávida de três meses, é a grande mulher que faz a vida ao lado de um grande homem. E, na preparação do marido para Los Angeles, acompanhou (de carro), Carlos, nos treinos de longa distância –"dava-lhe o abastecimento", incentivava-o, como se ele precisasse.

Sofria mais do que ele. "Na noite da maratona, fui à casa de banho, com cólicas. Fui às escuras e ele a dormir", confessa a antiga velocista, que dá a medalha de ouro "ao grande atleta e ser humano espetacular" que é o campeão olímpico, homem "teimoso, humilde e protetor da família".

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