Entrevista
CM em 2019, 35 anos depois
Entrevista escrita no CM 2019, 35 anos
depois
Fez 2:09:21 horas, recorde olímpico, que
durou 24 anos, ou seja, até Pequim. Mas ia preparado para fazer menos tempo?
Preparei-me para fazer
duas horas e sete minutos. Não foi necessário. Tinha a preocupação de fazer a
média de 20 km/h e durante duas horas. Estava a correr para 2h06/2h07. Sabia
como acabava os últimos 5000 m, quem eram os mais rápidos, mais fortes. Fui
‘despachando’, lentamente, o que era necessário ‘despachar’ com antecedência.
Tanto assim que quando o queniano Joseph? Nazau? se ‘ficou’, muito próximo dos
37 km, disse: ‘Bom, três é melhor que quatro adversários.’ Portanto, uma
medalha já estava garantida. Depois, bem, depois foi só ‘despachar’ os outros
dois.
No último quilómetro, o que é que lhe
veio à cabeça ?
Estar descontraído. Sabia
que tinha 200 metros de avanço. Sabia que era o que mais desejava no momento –
estar isolado. Já estava convicto que a vitória não fugiria. O importante não
era o recorde, mas, sim, ser o primeiro de todos, ficando para a história do
atletismo português.
Não pensou na mulher, nos portugueses,
na nossa bandeira?
Sendo uma pessoa fria, só
pensava em chegar à meta, em ganhar. Depois, sim, procurei a minha mulher no
estádio, porque queria que desse uma volta comigo, mas não foi possível. Quando
estava com ela, disse-lhe que gostava de ser mosca, para estar na cabeça das
pessoas.
Acreditou sempre na vitória?
Desde o tiro da partida
que a minha convicção era só uma: ganhar. E como, nesse ano, também tinha
batidos os recordes pessoais de 5000 e 10 000 metros, fui
tranquilo. Sem stress. Com a consciência de que estava preparado para ganhar.
Com quanta antecedência começou a pensar
na vitória?
Dois anos e meio antes.
Mentalizei-me que tinha a última hipótese de ser campeão olímpico, porque nos
10 000 m já tinha alguma dificuldade. Já estava com 37 anos e meio. Não era
impossível, mas era mais difícil. A maratona era mais acessível. Foi um risco
calculado.
Quando cortou a meta parecia ter vontade
de dar mais umas voltas na pista…
Ainda dei uma volta
seguida. Quando ia para dar a segunda, ao ver o John Treacy e os outros quase a
desfalecer, já não dei – era uma falta de respeito.
Antes da maratona não comeu hambúrguer
nem bebeu coca-cola?
Não. Bebi água e comi o
bifinho da ordem. Mas um bife com um tamanho…Um bife de quase um quilo.
E dormiu o sono dos justos?
Dormi tranquilamente.
Nem chorou de alegria?
Não era para chorar, era
para fugir dos outros.
Mas o seu treinador, Moniz Pereira, não
se conteve?
Chorou que nem uma
Madalena. Realizou-se o sonho dele – ter um atleta olímpico e, se possível, a
conquistar a medalha de ouro.
O seu sucesso também passa pelo
treinador e companheiros?
Claro. Uma equipa é uma
família. Sem treinador o atleta não pode ter sucesso. Alguns são mais atrevidos
e avançam, mesmo, contra a vontade do treinador. O próprio Moniz Pereira dizia
muita vez: ‘Eu mandar treinar os meus atletas? Eles treinam mais do que quero.’
Depois, há que acreditar. Se acreditamos muito no treinador, vamos até ao fim.
Depois, o grupo era extraordinário – o Fernando Mamede, o Aniceto Simões,
entre outros. Quanto maior for a qualidade dos atletas, melhor será para o
grupo. Entre os atletas acaba por haver uma disputa pelo poder , o que é
saudável. E quem não pensa assim dificilmente será grande atleta. Por isso é
que estava sempre preparado para correr com os melhores.
Tem noção do que representou a sua
conquista para o País?
Com 37 anos tinha essa
noção, embora não a demonstrasse. A vitória foi como que um acordar para as
novas realidades, para novos conceitos, para novos valores. Fui um dos grandes
responsáveis pela abertura a novas mentalidades.
Sente que Portugal lhe agradeceu?
O povo português… sim,
ainda hoje.
Mas…
…mas o reconhecimento existe,
está bem vivo na memória dos portugueses. Agora, possivelmente, podia ter
melhor vida, se quem tem poderes para desenvolver o Desporto tivesse outra
cultura desportiva.
A sua mulher viajou ao seu colo no carro
que o levou até à partida?
Quando me foram buscar
para ir para a partida, que ficava aí a 4 km, o automóvel estava cheio. Por
isso, a Teresa teve de ir ao meu colo. Houve ali umas palavras mais
‘desequilibradas’, mas, ao fim de duas horas, já estava perfeitamente
tranquilo. Agora, não foi agradável. Se foi uma forma de me pressionarem? Não
houve hipótese, porque ficou logo tudo sanado. Desabafei. Disse o que pensava.
Mas não é normal...
Em Portugal há sempre
coisas anormais. Pode nem ser por querer, mas, às vezes, não se mede o que se
diz. Não posso dizer que gostei. Como não gostei que não tivessem arranjado um
bilhete ou um cartão para a minha mulher entrar no estádio. Por acaso deu
comigo, que, ao fim de uma hora, esquecia tudo, desabafava o que tinha a
desabafar. Esquecia tudo. Tanto assim que, 40 minutos antes da maratona, tinha
46 pulsações por minuto.
"Safei-me de boa na avenida do
Eusébio". Quinze dias antes da maratona foi atropelado...
Estava a fazer um treino
muito específico, de 15 km, no máximo da minha velocidade. Vinha junto ao
passeio, em frente ao Estádio da Luz, hoje avenida Eusébio da Silva Ferreira. E
o Lobato Faria, comandante da TAP, sportinguista, fez o favor de me atacar com
todas as forças. Dei três cambalhotas no ar, tive o cuidado de meter a mão
atrás da nuca, encolhi-me… mas safei-me de boa. Quando me levantei, vi que não
estava nada partido. Fiquei descansado. Ainda fui ao hospital. Parei três dias
dias. Ele pediu-me desculpa, mas foi uma desculpa esfarrapada.
"Ultrapassava ciclistas a subir a
20 km/hora"
A Porta 10 A era a mais
famosa dos estádios portugueses. Era por ela que a maioria dos atletas
sportinguistas entrava e saía, para treinos e jogos. "Quando se entrava,
entrava-se com o coração aberto, disponível e sensível àquilo que era o grande
Sporting", recorda Carlos Lopes.
Era na mítica porta que o
viseense iniciava a preparação na estrada. Sempre com o leão na cabeça: "É
o símbolo do clube e eu, como leão, fiz tudo para também ser um símbolo do
clube. Na capacidade para lutar era um verdadeiro leão."
E de Alvalade seguia até à
subida para o Cabeço de Montachique (Loures), determinante na preparação para a
maratona. Já com muitos quilómetros nas pernas – perto de 20, a "uma média
de 3 minutos por quilómetro" –, Carlos Lopes chegava a atingir, na
escalada longa e acentuada, "20 km/h na parte mais dura. Até passava por
ciclistas". Os automóveis "não ultrapassavam os 30/40 km" e o
piso não era o de hoje, "tinha de se fugir dos buracos", lembra o
campeão.
À "consistência e
habilidade" ganhas na subida para o Cabeço de Montachique juntava-se o
crosse. No parque de Monsanto "fazíamos três voltas a um percurso de 5,5
km", conta o atleta de Vildemoinhos, lembrando, também, que subiam "íngremes
rampas, cinco e seis vezes" para saber "sofrer. E íamos para lá com
um sorriso nos lábios, porque sabíamos que alguém ali sofre que nem um
lobo".
A pista, essa, é
fundamental. Porquê? O beirão explica: "Permite-nos avaliar a nossa
velocidade de cruzeiro e a capacidade de competição. Avaliamos a velocidade
prolongada. O trabalho era todo feito à base de pista, pensado nas sérias que
fazíamos.".
"Teimoso, humilde e protetor da
família"
Conheceram-se no Sporting.
Teresa, campeã nacional dos 4x100, grávida de três meses, é a grande mulher que
faz a vida ao lado de um grande homem. E, na preparação do marido para Los
Angeles, acompanhou (de carro), Carlos, nos treinos de longa distância
–"dava-lhe o abastecimento", incentivava-o, como se ele precisasse.
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